domingo, 23 de julho de 2017

As Moedas da Fazenda Bom Sucesso

                                      Frei Hermínio Bezerra de Oliveira
                                                                                       (Numismata)

                                                          Da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza. 

            A ocorrência de moedas particulares no Brasil é rara. O numismata Kurt Prober, em seu prestigioso Catálogo de Moedas Brasileiras, apresenta-nos apenas duas: a da Companhia Inhomerim, de Nicteroy (RJ), sem data, no valor de 120 réis; e as moedas da Fazenda Bom Sucesso (CE–Baturité), de 1895, em três valores: um Alqueire (=36,27 litros), uma Terça (=12,8 litros), uma Quarta (=9,7 litros). Essas medidas correspondem à quantidade de café colhida, a qual era paga em réis, a moeda corrente, até outubro de 1942, quando foi substituída pelo cruzeiro e este pelo real em 1994. Já os Carimbos Particulares, são numerosos, pois Kurt Prober traz 279 deles (Vide: K. Prober, Catálogo das Moedas Brasileiras, 2ª ed.1966, São Paulo, pp. 132-137).  



A serra de Baturité – a 100 km de Fortaleza – teve com a cultura do café, o seu período áureo, comparável ao ciclo da borracha na Amazônia. A cultura do café ali, ao contrário do que muitos pensam, não dependia tanto dos grandes latifundiários, mas da roças ou capoeiras de café, dos pequenos proprietários, que eram numerosos na área.

A Fazenda Bom Sucesso, de Manoel José D’Oliveira, por sua localização e a situação hídrica, reunia condições para a construção de um “rodeiro” de beneficiar      café. Com o “rodeiro”, boa comunicação e a confiabilidade da vizinhança, ele passou a beneficiar quase todo o café da serra de Baturité. Assim, ele tornou-se um dos maiores proprietários da região no final do século XIX e início do século XX.

Com um grande poder aquisitivo, ele mandou cunhar as moedas na Europa, provavelmente em Portugal, conforme pesquisa do historiador Levy Jucá. Elas têm a particularidade especial de trazer, não o valor em réis, mas certa quantidade de cereais: um Alqueire, uma Terça, uma Quarta. Isso facilitava a operação de compra do café colhido. Essas moedas tinham liquidez no comércio local e regional, pela credibilidade de que gozava o Sr. Manoel J. Figueredo. Elas circularam por cerca de 20 anos, de 1896 a 1916 e eram aceitas até nas vizinhanças: Maranguape, Quixadá e outras cidades.



Na Fazenda Bom Sucessso estabeleceu-se um peculiar sistema econômico. Naquela época não havia inflação mas, no inverno, o café tinha ainda mais valor por ser mais difícil. Por seu volume de negócios, o Sr. Manoel José D’Oliveira Figueredo passava o verão na serra e o inverno no sertão. A Fazenda ficava próxima à então vila de Guaramiranga, não longe do topo da serra. O clima da região era petropolitano, chegando a 13º nas noites mais frias, quando hoje não sei se chega a 16º. Havia uma garoa persistente, uma frequente neblina e uma brisa prazerosa constante, algo para muitos inimaginável, no nordeste do Brasil.

À época eram vários os proprietários notáveis: Sr. Clementino Holanda, do Sítio Monte Flor; Sr. Filomeno Gomes, do Sítio Nova Friburgo, perto de Pacoti; Sr. Joaquim Torcápio, do Sítio Cana Brava; Sr. Bráulio Holanda, do Sítio Monte Alegre; Coronel Alfredo Dutra, do Sítio Álvaro; Coronel Chichio de Mattos Brito, do Sítio Brejo; Coronel Linhares e Dr. Caracas, do Sítio Venezuela, estes familiares de José Linhares, ex-presidente do Brasil, (de 29/10/1945 a 31/01/1946), e vários outros. Havia outrossim, muita animação sociocultural na região. Alguns dos filhos dos proprietários iam estudar na Europa, sobretudo, em Portugal.


O Vigário de Guaramiranga, Pe. João A. da Frota era um estudioso e possuía uma invejável biblioteca com clássicos da literatura portuguesa, latina e universal. O escritor Gustavo Barroso, cujo avô paterno, Capitão José Maximiliano Barroso, está sepultado no cemitério dessa cidade, era um dos frequentadores da região, assim como Qintinho Cunha. Em Guaramiranga circulava um jornalzinho semanal, manuscrito, intitulado “O Beija Flor”, que era avidamente disputado pelos leitores locais.
Com o passar dos anos a cultura do café na região teve sua decadência por vários motivos, inclusive, o cansaço da terra pelas repetidas queimadas e a falta de insumos adequados. Entre 1910 e 1930, alguns dos sítios foram adquiridos pelos irmãos Boris (da firma de exportação e importação Boris Frères & Cie). Outros entraram em decadência com a morte dos proprietários e o desinteresse ou impossibilidade dos herdeiros em mantê-los. Muitos preferiam viver em Baturité ou em Fortaleza.

O Sr. Manoel José D’Oliveira Figueredo também foi atingido pela crise. Comerciante correto e probo, ele passou cerca de dois anos comprando as suas próprias moedas de quantos as possuíam. Após juntar o máximo que pôde, agora, já sem poder aquisitivo, deu-as ao Coronel Aprígio Alves Barreira Cravo, do Sítio Pau d’Alho, em Pacoti, que em agosto de 1889 recepcionou o Conde D’Eu para um almoço, em sua viagem pelo Nordeste. O Sr. Manuel José entrou em estado de falência na maioria de seus negócios. Desesperado, ele pôs fim à sua própria vida de uma maneira trágica: fincou um punhal num portal e jogou-se contra o mesmo. Requiescat in pace!

 Quanto às moedas, elas passaram por várias mãos. O Coronel Aprígio – herdeiro em confiança – vendeu seu Sítio Pau d’Alho, ao Coronel José Marinho de Goes, porém, deu as moedas e as louças da Casa Grande, ao Coronel Zeca Sampaio, do Sítio São Luis. Desde 1920 essas moedas permanecem entre os descendentes do Coronel Zeca Sampaio: Luís Cícero Sampaio (filho); depois, Onofre Medeiros Sampaio (neto) e atualmente, com o Sr. Francisco Luís Oliveira Nepomuceno (bisneto). Até 1980, elas continuaram a circular exclusivamente no Sítio São Luís, não como moedas, mas apenas como “fichas”, para apanhadeiras de café. A cada balaio de café apanhado a pessoa recebia uma, e, no final do dia, contavam-se os balaios, pelo número de moedas que cada uma detinha era feito o pagamento.


Como vemos, estas moedas fizeram história. Mesmo após encerrarem o seu ciclo produtivo, elas têm hoje, um elevado valor numismático e histórico, por sua inestimável contribuição ao progresso, como capital que produziu trabalho e gerou riquezas no maciço de Baturité e circunvizinhança.

Hoje estas moedas são peças especiais de museus e os numismatas as caçam, como raridades. A elas aplica-se com muita justiça, a frase do grande médico grego, Hipócrates: βἰος βραχὐς, δὲ τέχνη μακρή = A vida é breve, a arte é longa.  Sêneca repetiu-a em: Ars longa, vita brevis = A arte é longa, a vida é breve. Em apenas vinte anos de vida útil e produtiva, o Alqueire, a Terça e a Quarta – da Fazenda Bom Sucesso –  tornaram-se perenes.

O Sítio São Luis com 250 hectares, sendo 150 de mata nativa, continua ativo. Pertence à Sra. Cláudia M. Mattos Brito de Goes. A produção de café na região diminuiu muito nas décadas 1980/1990, mas desde 2015, com a criação da Rota Verde do Café da Serra de Baturité, a Casa Grande, com a sua bela colunata, é aberta a visitantes nos finais de semanas.

É possível uma visita histórica guiada, mas com agendamento prévio pelo site: www.facebook.com/institutositiosaoluis. Além da Casa Grande com suas 30 colunas e o silêncio do local, há um entorno maravilhoso com ótimas opções de lazer.

sábado, 8 de julho de 2017

Uma Cédula: o Reichsmark de 1920

Paulo Avelino


A nota de cem marcos de primeiro de novembro de 1920 se coloca dentro da evolução da moeda alemã. Evolução esta que começou com a criação da nova moeda, o marco, logo depois do surgimento do Império Alemão em 1871. O novo padrão monetário substituía dezenas de moedas de reinos e cidades livres que então constituíam o território no centro da Europa.

Quatro anos depois, em 1875, o novo Estado fundou o Reichsbank, o Banco do Império, o banco emissor principal. Como virtualmente todas as moedas da época, o marco ou Reichsmark era conversível em ouro – ou seja, teoricamente o portador da nota poderia apresentar-se ao banco e receber seu equivalente em gramas do metal.

Nas décadas seguintes as potências europeias se envolveram em corrida armamentista e a Alemanha cresceu muito como poder industrial.

Até que em agosto de 1914 estourou uma guerra, que ficaria conhecida como Primeira Guerra Mundial. O governo alemão imediatamente suspendeu a conversibilidade da moeda. Quanto às despesas da guerra, o governo decidiu financiá-las inteiramente com empréstimos. Não aumentou nem criou impostos. Em contraste, a Franca criou o imposto de renda exatamente para financiar a guerra.

E a Alemanha perdeu a guerra em novembro de 1918. Então a estratégia adotada mostrou seu lado negativo – o governo se viu atolado em dívida. Além disso os vencedores no Tratado de Versalhes impuseram pagamento de reparações – o que aumentou ainda mais os problemas.

As reparações só podiam ser pagas em moeda estrangeira. Para comprá-la, o novo governo alemão usava notas de marcos. O problema é que o governo começou a emitir cada vez mais marcos, e estes passaram a diminuir de valor.

A nossa nota data exatamente desse ponto. No seu alto temos a inscrição RBDReichsbankdirektorium – a diretoria do banco central, com as assinaturas dos diretores também na nota. Temos o valor Hundert Mark (cem marcos) e imediatamente abaixo um aviso de que a caixa central do banco em Berlim deve pagar por esta nota o valor equivalente. Esse aviso era típico das moedas conversíveis. Sobre o selo do Diretório vê-se Mercúrio, o deus do comércio.

No verso, o numeral cem aureolado por um aviso de que qualquer imitação ou falsificação será punida com pelo menos dois anos na penitenciária.

Essa nota em pouco tempo passou a valer muito pouco. As emissões acionaram uma espiral inflacionária com os preços a disparar e o governo a emitir mais ainda. Quando foi impressa essa nota valia mais de um dólar. Dois anos depois eram necessárias noventa delas para comprar o mesmo dólar. Mas isso nada seria em relação ao que veio depois: no dia 11 de novembro de 1923 eram necessários quatro trilhões e duzentos bilhões de marcos para comprar um dólar.

A inflação desapareceu quase do dia para a noite com introdução de nova moeda, o Rentenmark. Mas a crise deixou problemas sociais fundos, os quais vieram a facilitar a ascensão do nazismo, anos depois.

A nota é uma pequena parte dessa história.

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Bibliografia:

Deutsche Bundesbank. First German 100 Mark note. Disponível em <https://www.bundesbank.de/Redaktion/EN/Standardartikel/Bundesbank/Coin_and_banknote_collection/first_german_100_mark_note.html> . Acesso em 08 Julho 2017.

Wikipedia. Hyperinflation in the Weimar Republic. Disponível em  <https://en.wikipedia.org/wiki/Hyperinflation_in_the_Weimar_Republic>. Acesso em 08 Julho 2017.

Values of the most important German Banknotes of the Inflation Period from 1920 – 1923. Disponível em <http://www.sammler.com/coins/inflation.htm>. Acesso em 08 Julho 2017.